Comentando o
titulo da próxima Exortação Católica, que deverá ser publicada no próximo dia
8, o teólogo leigo italiano Andrea Grillo (professor do Pontifício Ateneu S.
Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto
de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua), citou os
principais documentos pontifícios da igreja. Uma feliz e oportuna referencia
que vale a pena transcreve-la:
1) Arcanum
divinae sapientiae, encíclica de Leão XIII (1880)
Toda a grande tradição medieval, mediada com autoridade pelo Concílio
de Trento, assume, com essa encíclica, a problemática nova e inédita de uma
reafirmação da "competência eclesial" diante da competência dos
Estados modernos sobre o matrimônio, que o século XIX tinha recém-inaugurado.
Todos os temas fundamentais típicos da tradição, assim, são
"filtrados" por esse problema novo e dramático. Nessa encíclica,
elaboram-se as "formas de pensamento e de ação", que, depois, serão
assumidas pelo Código de Direito Canônico de 1917. E que se tornarão, por
muitas décadas, o ponto nodal decisivo da compreensão "católica" do
matrimônio, da família e do amor. Com as suas qualidades e os seus defeitos.
2) Casti connubii, encíclica de Pio XI
(1930)
Cinquenta anos depois, em um mundo completamente diferente, Pio
XI assume um tema específico, como o da oposição à "contracepção" –
admitida naquele ano pela confissão anglicana – como "chave de
compreensão" do matrimônio e da família. Ele vai determinar, a partir de
então, uma prioridade precisa na leitura "natural" do matrimônio e da
família. A renúncia à "liberdade" no contexto matrimonial é traduzida
na norma de uma sexualidade puramente "objetiva", quase depurada da
subjetividade e regulada apenas naturalmente. Em um abraço entre graça e
natureza que, no longo prazo, correrá o risco de se tornar asfixiante. E de
polarizar cada vez mais a relação com a cultura civil.
3) Humanae vitae, encíclica de Paulo VI
(1968)
Apesar da mudança parcial de linguagem introduzida pelo Concílio
Vaticano II e do caminho a uma "personalização" do matrimônio e da
família, ainda em 1968, encontramos na Humanae vitae
de Paulo VI a configuração que remonta à Arcanum sapientiae divinae e
à Casti connubii: o matrimônio e a família – como lugares únicos da sexualidade
– são inteiramente "predeterminados" por Deus, deixando ao ser humano
um espaço de responsabilidade tão ínfimo a ponto de ser, muitas vezes, quase
fictício e sempre muito formal. Uma "geração responsável" se torna um
tema abstrato, ao qual não correspondem "práticas" realistas. Mas a
solução ineficaz depende de um modo de pensar o matrimônio e a família "em
contraste" com a cultura civil moderna. Matrimônio e família se prestam
ainda a ser "usados" como baluartes antimodernistas e como reservas
de competência eclesiástica. Mas, nesse "uso", também sofrem
mortificações e reduções progressivas.
4) Familaris consortio, exortação
apostólica de João Paulo II (1981)
Embora dentro de uma forte continuidade com a linguagem do
século anterior, a Familiaris consortio opera duas grandes mudanças: por um
lado, introduz, até mesmo no título, a expressão "familiaris", que é
nova no magistério, que desde sempre tinha se ocupado de
"matrimônio", não de família. O precedente aqui é o Concílio Vaticano
II e o seu repensamento eclesial da família. Mas a segunda passagem decisiva é
o reconhecimento aberto de uma "diferenciação" da sociedade, que já
parece ser evidente também para a Igreja. Não existem apenas "famílias
regulares", mas também "irregulares", que não são mais
automaticamente "infames" e "excomungadas". O documento de João
Paulo II não faz muito mais do que essa "admissão": mas é o início de
uma pequena revolução. A lógica da contraposição à sociedade civil, inaugurada
pela Arcanum divinae sapientiae em 1880, 100 anos depois, não se sustenta mais
no plano prático e operacional, embora teoricamente ainda possa dar algum
pequeno conforto. À contraposição frontal, é preciso substituir a conciliação
na diferenciação. É apenas uma tarefa, não desempenhada, mas claramente captada
e indicada.
5) Amoris laetitia, exortação apostólica
de Francisco (2016)
Assim se chega a Francisco. E aqui nos detemos. Mas não temos
apenas um documento "desconhecido", mas temos também essa longa
história recente, temos um percurso sinodal preciso, temos uma exigência viva
de conversão pastoral, temos uma retomada vigorosa da entrega conciliar.
Leremos na próxima sexta-feira o fruto dessa articulada elaboração. O que nos
permitirá reler toda essa história de um modo novo. Por enquanto, observamos
que, mesmo que apenas no plano do "léxico" – ao menos dos títulos –,
os "nomes do amor" mudam e são passados de mão em mão: do ''arcano da
sabedoria divina", passa-se ao "casto conjúgio", depois à "transmissão
da vida humana", depois à "comunhão familiar", para chegar, por
fim, à "alegria do amor".
Em transparência, vemos florescer, através
desses nomes, uma história complexa, sofrida, problemática e, ao mesmo tempo,
promissora. O novo documento deverá ser lido nesse "amplo fôlego", na
longa extensão dessa história recente, mas não esmagada na história recente.
À luz desse último documento gozoso, todos
os outros, inevitavelmente, assumirão cores e formas novas. Como é bom que
seja. Como sempre foi, todas as vezes em que a tradição soube se mostrar e se
reconhecer não só "viva", mas também "sã"[1].
Digitou esse texto
Ricardo Rodrigues de Oliveira, enfermeiro cuidador do autor.
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