O filosofo
Massimo
Borghesi da Universidade de Perugia, em entrevista, da a sua avaliação
Três anos após ser eleito, o Papa Francisco segue sendo um
grande quebra-cabeça para muitos intelectuais, mas sobretudo para os acérrimos
defensores das ideologias do século XX. Ele não é de esquerda nem de direita.
Sua pastoral e sua linguagem acessível colocam-no mais perto do povo do que das
elites eclesiais ou laicas. Você, como filósofo, como interpreta sua
personalidade?
Tudo o que você disse é verdade. Desde o princípio do seu
pontificado, o Papa Bergoglio fez entrar em crise os comentaristas e analistas
por esse seu estilo completamente novo. Comentaristas e analistas que se
esforçam para encontrar as “raízes” do Papa latino-americano para
compreendê-lo, e em muitos casos para poder criticá-lo e deslegitimá-lo.
Sobretudo certa corrente conservadora que nos anos de Bento XVI já tentou, sem
sucesso, ajustar a imagem do Papa Ratzinger ao seu gosto, e agora acusa o Papa
Francisco de ser populista, peronista, partidário da Teologia da Libertação,
etc. Também o acusaram de “duplicidade jesuítica”, desempoeirando as armas de
um velho laicisimo, que curiosamente hoje é empunhado pela direita católica.
Tudo isto demonstra uma boa dose de ignorância e de
preconceito. O Papa Bergoglio nunca foi filo-marxista. Simplesmente nunca foi
de direita. Sua
Teologia do
Povo nasce no contexto da Argentina dos anos 70 como resposta
“católica” à teologia da revolução. Não se trata de uma concepção ideológica,
mas que a fé se arraiga na mística popular, em uma tradição cristã viva,
histórica, que a Igreja Institucional não pode desconhecer sem correr o risco
de tornar-se abstrata e formalista. O sensus fidei do povo crente é um “lugar
teológico”, assim como os pobres são os prediletos, aqueles que Deus ama de uma
maneira especial. A Teologia do Povo é uma resposta às posturas ideológicas, de
direita ou de esquerda, ao elitismo de marca iluminista ou ao gnosticismo que
reduz a fé a “doutrina”.
De tudo isto se desprendem consequências importantes. A
primeira é uma concepção “carnal”, “física”, do cristianismo. Um povo nasce de
uma relação viva, real, não de uma proposta abstrata. O cristianismo, por
natureza, comunica-se na situação concreta do ver-ouvir-tocar-abraçar. A isto
se deve a simplicidade da linguagem evangélica, cheia de exemplos e de convites,
que não se limita a instruir, mas que quer envolver o coração. Quer construir
uma relação real entre Deus e aqueles que o escutam. Um Deus que o coração pode
sentir: isso é o cristianismo para Bergoglio.
Um fator controverso é a suposta descontinuidade de Francisco
com seus predecessores, pelo menos em nível pastoral. Esta é, na sua opinião,
uma leitura correta?
Não. Na realidade, há um fio condutor que une Bergoglio com Ratzinger
e consiste na percepção de que o cristianismo, em um mundo cada vez mais
neopagão, só pode voltar a ocorrer se constituir um “encontro”. Assim o afirma
a
Evangelii
Gaudium no n. 7, retomando o ponto n. 1 da Deus caritas est, que
diz: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo
horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”. É um ponto de
convergência importante, porque tanto na vida como na fé, o ponto de partida
decide tudo.
Este é o ponto que Ratzinger e Bergoglio compartilham com
dois grandes mestres e educadores cristãos do século XX:
Romano
Guardini e Luigi Giussani. Se o cristianismo, hoje assim como há
dois mil anos, recomeça a partir de um “encontro”, e não da organização, da
militância, da dialética, etc., então o testemunho vem em primeiro lugar. A
re-presentação de Cristo no mundo é, tanto para Bento como para Francisco, a
tarefa essencial da Igreja no contexto histórico atual, esse primerear
fundamental que o clericalismo esquece dando-o como evidente.
Isso quer dizer que o enfoque pastoral de ambos os papas é o
mesmo. A diferença, em todo caso, está no estilo. A reserva e timidez de Bergoglio
são diferentes do abraço físico de Francisco. Esta dimensão de Bergoglio não é
um dado que o caracteriza, mas o resultado de uma maneira de entender a fé que
nasce do espetáculo do povo crente na geografia espiritual da América Latina. É
o que dizia antes. A fé se alimenta dentro de um povo, de uma comunidade viva,
de uma proximidade real.
No primeiro ponto da Evangelii Gaudium, Francisco afirma: “O
grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo,
é uma tristeza individualista”. Ou seja, o Ocidente está afetado pela tristeza
individualista. Neste sentido, sem dúvida há uma diferença entre Francisco e Bento,
porque há uma superação do enfoque eurocêntrico que caracteriza a visão
cultural do Papa Ratzinger. Com Francisco, entra em cena a perspectiva de uma
fé viva, atual, arraigada em um tecido popular e solidário, que à senil Europa
parece, pela influência iluminista, a herança de um passado muito distante.
Que juízo merecem as reformas e inovações de Bergoglio (como
o redimensionamento da cúria, a sinodalidade, a atenção às “periferias” e a
modernidade), à luz do Concílio Vaticano II?
São reformas que se inscrevem na perspectiva aberta pelo Concílio
Vaticano II. O redimensionamento da cúria – a reforma mais difícil! –
corresponde a uma política de economia e procede em consciente oposição ao
processo de burocratização eclesial que imperou nas últimas décadas. A cúria
deve recuperar a sobriedade no desempenho de suas funções, evitando na medida
do possível carreirismos e protagonismos que prejudicam seriamente o ministério
petrino. Neste sentido, a discrição que caracteriza o atual secretário de
Estado é um claro exemplo.
Outra reforma refere-se ao exercício sinodal, a forma que a
autoridade deve assumir na Igreja. Bento XVI já havia falado desse tema em uma
entrevista concedida à Rádio Vaticano de 5 de agosto de 2006, auspiciando um
pontificado não monárquico. O problema de superar a forma “monárquica” e
absolutista do papado é um ponto central de reflexão desde o Vaticano II.
Inclusive o diálogo com a Igreja ortodoxa, que acaba de viver um momento
culminante com o
abraço
entre Francisco e Kirill, requer uma volta ao enfoque eclesial do primeiro
milênio.
Quanto ao encontro entre fé e modernidade, Bergoglio não tem
dúvidas. Disse em várias oportunidades: o Concílio Vaticano II constitui o
encontro entre a Igreja e o mundo moderno. É um ponto sem retorno. Isso
significa, em primeiro lugar, uma rejeição da teologia política, do uso
político da religião. Com respeito a Ratzinger, o matiz que distingue Bergoglio
ao propor a relação entre fé e modernidade consiste em que o moderno não é só
europeu, mas também latino-americano. A América Latina é um contexto onde a
secularização não levou à “privatização”, à solução individualista da fé.
Do Iluminismo europeu resgata a clara distinção entre Igreja
e Estado e o tema dos direitos e liberdades. Ao contrário, rejeita seu elitismo
intelectualista, seu rosto não popular. Neste sentido, a perspectiva da
“periferia” corrige a perspectiva do centro. Mas trata-se de uma correção, de
um ponto de vista privilegiado, não de uma alternativa terceiro-mundista ao
Ocidente. Quem interpreta assim o Papa Francisco comete um grave erro. A visão
de Francisco é “polar”, e uma polaridade fundamental é entre o “centro” e a
“periferia”.
No magistério social, que ocupa uma parte importante do seu
pontificado, a atenção que o Santo Padre dá ao tema do meio ambiente e é
sintetizado na Laudato si’, configura um espaço novo e original. A ecologia
passa a ser pela primeira vez objeto de interesse para a Igreja ou neste
sentido a encíclica é antes um ponto de chegada, embora seja intermediário?
A encíclica
Laudato si’
é um documento que foi muito criticado mas pouco lido. Criticado pela direita
liberal, sobretudo nos Estados Unidos, porque interpreta o texto como um
perigoso ataque contra a doutrina do laisser-faire, contra a doutrina do
mercado acima de qualquer limitação ética ou jurídica. Na realidade, a
encíclica critica severamente o “paradigma tecnocrático” que na era da
globalização se impõe sem limites. É o mesmo paradigma que leva a considerar os
idosos, os embriões com patologias, os doentes terminais, as pessoas com
deficiências e os pobres em geral como “descartados”, seres inúteis, não produtivos,
pesos mortos para a sociedade.
A devastação ecológica de regiões inteiras do planeta é fruto
de um modelo que simultaneamente rejeita a humanidade débil e desprotegida. As
correntes da direita cristã que lutam contra o aborto e a eutanásia não captam
este duplo vínculo, e então são completamente liberais em matéria ecológica e
ambiental, subordinando-se aos interesses do neocapitalismo mundial. Como
afirma a Laudato si’ no número 117: “Quando, na própria realidade, não se
reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com
deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os
gritos da própria natureza. Tudo está conectado”.
Em sua análise do paradigma tecnocrático como módulo
dominante na economia das últimas décadas, Bergoglio se deixa guiar pela
reflexão sobre o poder na era da técnica desenvolvida por um de seus autores
preferidos, Romano Guardini. A Laudato si’ está cheia de citações de Guardini.
Por último, observamos que a importância da questão ecológica
como problema planetário começa em Bergoglio de sua clara consciência de que os
países da “periferia”, da África, da América Latina, etc., se converteram no
depósito de lixo do mundo. O que o Ocidente protege para si mesmo, com a
proteção da natureza e do meio ambiente, é destruído nos países mais pobres,
que sofrem a exploração indiscriminada de seus recursos, o desmatamento, a
contaminação da água e do ar e a reciclagem de resíduos tóxicos. A questão
ecológica afeta diretamente as periferias, os subúrbios do planeta, não as
verdes campinas do mundo rico.
Com relação à diplomacia vaticana. Um grande êxito de
Francisco foi ter posto paz entre Cuba e os Estados Unidos depois de 50 anos.
Paralelamente, está trabalhando na frente ecumênica ortodoxo-católica (é
histórico o seu encontro com o patriarca Kirill), e também para salvar o
Oriente Médio do abismo e os cristãos medio-orientais da perseguição. A que
novo ordenamento geopolítico poderia levar o trabalho diplomático do Papa?
Sem dúvida há três questões sobre o tapete. A primeira:
apoiar o processo de distensão entre o Leste e o Oeste, entre a Rússia e o Ocidente,
para evitar um conflito cujos resultados seriam catastróficos. O abraço entre Francisco
e Kirill tem um valor geopolítico enorme. Assim como teve, na sua época, a mão
que Francisco estendeu a Putin com sua oração em São Pedro pela paz na Síria,
para frear o projeto estadunidense de intervir diretamente na guerra contra Assad.
Sem avalizar os planos hegemônicos do Kremlin, o Papa contribuiu para que a Rússia
pudesse sair do beco sem saída em que perigosamente a haviam encurralado.
A segunda questão está relacionada com a anterior. Trata-se
de apoiar todos aqueles fatores que possam favorecer processos de paz na Síria
e no Oriente Médio, para proteger os cristãos e os próprios muçulmanos. O
respeito que Francisco mostra pelo Islã, junto com a firme crítica contra o
fundamentalismo religioso, tem como objetivo a convivência pacífica dos povos.
Sobretudo os que estão sendo desgarrados por trágicas guerras civis. É o que a
direita cristã não entende, aferrada ao cenário teocon do enfrentamento entre o
Islã e o Ocidente.
A terceira questão importante para o Papa é a
China.
O sonho de relações diplomáticas plenas, que garantam a completa liberdade do
catolicismo chinês, é sem dúvida um dos grandes desejos de Francisco. Já foram
dados passos importantes e sinais de respeito recíproco. O futuro está nas mãos
de Deus. Também neste caso, uma relação plena ajudaria para o encontro entre o Ocidente
e o Oriente, que sempre redundaria em benefício da paz no mundo.
A informalidade deste Papa, seus frequentes discursos
improvisados, a facilidade com que dá entrevistas, também são objeto de
polêmica. Em definitiva, que tipo de linguagem utiliza?
É uma linguagem simples acompanhada pela linguagem do rosto,
das mãos, do corpo. Em seu livro O sonho do Papa Francisco, o Pe. Antonio
Spadaro descreve muito bem este aspecto do testemunho papal: “Bergoglio –
afirma Spadaro – ‘habita’ a palavra que pronuncia. Assim como ele não é capaz
de viver sozinho, mas necessita de uma comunidade, da mesma maneira sua palavra
tem necessidade de assumir uma forma para aqueles que tem diante de si. Nunca é
pronunciada porque é bela, mas porque é capaz de construir uma relação com o
Evangelho. A palavra de Bergoglio é filha do sermão humilde de Santo Agostinho,
porque quer ser uma ‘palavra-casa’, bela, acessível e clara, ‘suave’. Por isso,
sempre se caracteriza pela oralidade, pelo diálogo, mesmo que esteja escrita.
As palavras tomam corpo”.
Com relação à “informalidade” do Papa, Spadaro recorda que
para Francisco ser “normal” é uma condição do ser cristão. Este homem, que hoje
se converteu em um ícone midiático mundial, rejeita todos os clichês das
“estrelas”, em primeiro lugar fazer alarde de distância e de excepcionalidade.
O Deus semper maior entrou no mundo como um Deus absconditus, que participa
plenamente da normalidade da vida. Como a famosa imagem do Papa que sobe as
escadas do avião levando ele mesmo sua pasta preta.
Nunca um Papa recebeu tantas críticas precisamente no mundo
católico. Na sua opinião, são críticas puramente ideológicas ou nascem de
interesses concretos que Francisco coloca em discussão?
As duas coisas. Não há dúvida de que as reformas e o estilo
de vida do Papa podem incomodar, momentaneamente,
privilégios e
carreiras construídos em base a sólidos interesses. Na Igreja,
o clericalismo e a burocracia caracterizaram as últimas décadas. A
desorientação diante de um Papa que utiliza um carro comum é bastante grande.
Neste caso, o melhor ataque é acusá-lo de demagogia, de populismo, de buscar o
aplauso das multidões. Na realidade, por trás das críticas não é difícil
adivinhar cargos e ambições. Por isso, muitos esperam atrás de uma janela a
passagem do ciclone e que tudo volte a ser como era antes. Enquanto isso, é
suficiente atualizar a linguagem eclesiástica – as “periferias”, os “últimos”,
a “misericórdia” – sem que nada mude realmente.
Por outro lado, é preciso entender que hoje Francisco é a
única voz relevante, em nível mundial, que se opõe verdadeiramente à
“ideologia” da globalização, ao dogma de um sistema econômico que dissolveu a
esfera política e criou antíteses profundas dentro e entre os Estados.
Diferenças que são a premissa para enfrentamentos, violências e guerras
futuras. Atenuar os contrastes sociais é um imperativo para a paz no mundo; é
isso que Francisco tem em mente.
O liberalismo econômico, sem freios, não construiu a unidade
do mundo, mas todo o contrário. Na sociedade, criou a dupla exclusão de idosos
e jovens sem trabalho. Os dois pólos da sociedade, os idosos – que são a
memória de um povo – e os jovens – que são seu futuro, sua esperança –, são os
excluídos, os “descartados” em um mundo obcecado pelo seu próprio presente.
Nisto consiste a atual decadência do mundo, que já não tem uma visão de seu
próprio futuro porque cortou as raízes de seu próprio passado. Bergoglio não é
um “progressista” iluminista. Sabe que não há progresso se não se proteger a
memória popular, a memória dos “avós”, que não devem ser enxotados em casas
geriátricas, mas que devem proteger os seus netos.
A direita católica, subordinada à direita liberal, não
compreende a riqueza deste enfoque. Acusam o Papa de ser “modernista” e não
compreendem que fazem o jogo de um neocapitalismo individualista e cínico,
primeira causa da “revolução antropológica” que hoje dissolve toda certeza moral.
Esta incapacidade para identificar o verdadeiro adversário é o ponto fraco de
um pseudo-pensamento católico que perdeu as coordenadas para compreender o
momento presente.
Digitou esse texto
Ricardo Rodrigues de Oliveira, enfermeiro cuidador do autor.