Passada a
visita do papa ao México, só agora aparece na imprensa a reação de alguns
Bispos mexicanos ao duro discurso que o papa Francisco pronunciou ao episcopado
mexicano, quando de sua visita à aquele pais.
Primeiro, o
editorial do semanário da Arquidiocese da Cidade do México, ‘Desde la Fe’, voz
da Igreja Católica no país, que enfrenta a enorme controvérsia gerada pela
muito dura reprimenda que o Papa
Francisco fez a todos os bispos mexicanos, em seu encontro do último
dia 13 de fevereiro, na catedral da Cidade do México. Este editorial se
pergunta: “Quem aconselhou mal ao Papa?”
Diz o texto:
Um capítulo a mais das evidentes más relações de Francisco com o cardeal Norberto
Rivera e que levaram o Papa, segundo pôde saber El Mundo, a exigir
que o núncio, Christophe Pierre, estivesse presente na maioria dos atos, para
evitar o encontro direto com Rivera. Aquele encontro com os bispos, que
inicialmente seria privado e que Francisco exigiu que fosse público, provocou
feridas dentro do catolicismo mexicano.
No semanário, em uma calculada mensagem em
que atira a pedra e esconde a mão, apontando o Papa e seu entorno, mas culpando
os meios de comunicação de não saber interpretar a mensagem, a Igreja mexicana
começa dizendo: “Analisando a mensagem que Sua Santidade pronunciou na Catedral
do México, podemos ver como o Papa adverte sobre os riscos que os bispos de
nosso país enfrentam diante do secularismo: opacidade, adormecimento,
distanciamento, frieza, clericalismo, autorreferência, triunfalismo estéril e
obscuridade que pode eclipsar a luz do Evangelho. E os chama a estar alerta”.
Em seguida, a Igreja mexicana começa a
analisar o duro sermão dado pelo Papa, apontando aquela que foi a sua frase
mais célebre, ainda que sem repeti-la em seu contexto e um pouco maquiada: “Foi
a frase – Brigar como homens - a que repercutiu entre os comunicadores –
impelidos mais pelo histrionismo midiático que pelo profundo significado das
palavras – como uma forte repreensão aos pastores”, disse o editorial, para
depois prosseguir estufando o peito: “Aqui, cabe se perguntar: o Papa tem
alguma razão para repreender os bispos mexicanos? O que, sim, tem o Papa, está
muito claro, é que a Igreja no México é um caso atípico em relação a outros
países da América. Em primeiro lugar, em termos de porcentagens, nossa nação
conta com a maior quantidade de católicos, com 81% da população em 2014, e é
justamente por causa dessa ampla e sólida presença de católicos que nos
distinguimos de outros países do continente”.
‘Os esquecidos’ do
Santo Padre
De fato, neste aspecto evangélico, a
Igreja volta a usar um estilo indireto para comentar os ‘esquecidos’ do Santo
Padre: “Por outra parte, seria absurdo pensar que Sua Santidade desconhece a
grande resistência que a Igreja Católica mexicana opôs à expansão das
comunidades protestantes de marcas carismáticas e pentecostais, que, não
obstante, propagam-se sem freio em outros países, especialmente da América
Central”, diz o texto que recorda que a Igreja mexicana conta com quase um
século “em que a ofensiva anticlerical e maçônica foi desapiedada”, para voltar
a se perguntar: “Por acaso, o Papa Francisco desconhecerá isto, para repreender
aos bispos?”.
Por último, após vários parágrafos onde só são utilizados
termos soltos do dito pelo Papa e se mantêm as conquistas atingidas pela Igreja
do México, a arquidiocese mexicana termina com um parágrafo no qual, sempre com
perguntas, parece aceitar tudo o que se tenta negar anteriormente, que o Papa
tenha repreendido duramente os bispos, e diz: “O Episcopado Mexicano está unido
e disposto a enfrentar os desafios que Sua Santidade apresentou.
Lamentavelmente, existe a mão da discórdia que tentou colocar os acentos
negativos, parcializando a visão de Igreja e procurando influenciar no discurso
pontifício para conseguir um efeito contrário no público, ao ressaltar desafios
e tentações como males do episcopado. Não é assim. E, aqui, cabe a questão: por
que procurar depreciar o trabalho dos bispos mexicanos? Felizmente, o povo
conhece seus pastores e os acompanha na construção do Reino de Deus, seja ao
preço que for, como foi ao longo da história deste país... Ou será que as
palavras improvisadas do Santo Padre corresponderiam a um mau conselho de
alguém próximo a ele? Quem aconselhou mal ao Papa?”, conclui.
Não foi ontem a primeira vez que a Igreja
mexicana usa o semanário ‘Desde la Fe’ para analisar a visita do Papa, nem para
destacar as falhas que houve de organização: “Os erros logísticos e a
desorganização salientaram aspectos, incitando mais o protagonismo de
responsáveis, desvalorizando a eficiência, desprestigiando o toque de
impecabilidade no processo organizativo, poucas mãos concentraram muitas
funções, colocando em risco a efetiva preparação e diligente cuidado que
deveria ter correspondido a cada uma das dioceses visitadas pelo Papa”, dizia
em seu editorial, no último dia 21 de fevereiro.
Críticas
Então, a Igreja atacava o Governo e os
meios de comunicação, explicando que “não se importaram com os rigores, as
privações e incômodos diante da feroz vigilância que sequestrou as cidades
sede. Os exageradíssimos controles das autoridades causaram mais incômodos que
benefícios. É certo que o Papa jamais desejaria reféns e mais reféns, longas
durações de fechamentos de ruas e paralisação do transporte público. Tudo isto
provocou perdas para trabalhadores e chefes de famílias, mas a fé do povo move
montanhas”, disseram sobre o Governo.
A respeito dos meios de comunicação, o
editorial dizia que “houve supostamente mestres da comunicação que ao invés de
informar, induziram o público aos vícios de parcialidade, meias verdades,
visceralidade e inflamações deformantes da opinião. Como mercenários, buscaram
o lucro, privilegiando a desonestidade acima da verdade e equilíbrio
profissionais. Sem um pingo de autoridade moral foram arremedo e figurino de
julgamentos implacáveis, quando mordiam a própria língua frente à corrupção e
desonestidade de seus atos, não vistos pelo público na tela pequena. Repórteres
que, a qualquer preço, louvaram a excentricidade, privilegiando ataques e
agressividade”.
A realidade, conforme pôde confirmar El
Mundo, sobre o que em todo caso é um segredo de polichinelo, é que as relações
entre o Papa Francisco e o cardeal Rivera são péssimas. O cardeal, ao se sentir
relegado na viagem, colocou paus nas rodas, especialmente ao não mobilizar
voluntários. O próximo capítulo será a rápida renovação da cúpula da Igreja
mexicana, onde é provável que o desencontro se torne mais evidente.[1]
Depois disso, o Pe. Hugo Valdemar diretor de Comunicação
Social da Arquidiocese da Cidade do México, afirmou que "o cardeal Rivera
não tem nada que ver com as críticas ao Papa”. Eis a carta do Pe. Hugo:
"Sr. Andrea
Tornielli,
Li com grande surpresa o artigo publicado
no Vatican Insider, entitulado "O cardeal
Rivera: alguém aconselha mal o Papa", o que me obriga a fazer
de seu conhecimento os seguintes esclarecimentos.
O semanário Desde a fé da Arquidiocese do
México não é a voz oficial nem da Arquidiocese nem de seu arcebispo, o cardeal
Norberto Rivera Carrera. Os artigos editoriais são a opinião
do Conselho Editorial, que preside um servidor, mas não podem ser atribuídos à
autoria ou à opinião do Cardeal Rivera; em todo caso, o responsável por estas
posições declaradas é um servidor, mas não o Arcebispo.
Por 13 anos, o Cardeal Rivera confiou-me a
liderança de nosso semanário
diocesano, e devo dizer que em nenhuma ocasião sequer deu-nos indicações do que
escrever ou do que omitir, já que é extremamente respeitoso quanto à publicação
e à liberdade de opinião. A partir desta perspectiva, considero que não é
correto atribuir ao Arcebispo do México um desgosto por causa das palavras do
Santo Padre na Catedral Metropolitana do México.
Quanto ao conteúdo do artigo, penso que
você tem todo o direito de expressar qual é o seu parecer, como nós fizemos no
editorial, sendo ainda assim muito respeitosos do Santo Padre, e sentindo-nos
livres na Igreja universal para dar um ponto de vista diferente em que se
aprecia o trabalho e o labor pastoral dos bispos
mexicanos.
Ficaria muito grato que se faça conhecer
por seus leitores este esclarecimento, e desejo-lhe todas as bençãos no
Senhor".
e o jornalista italiano, Andrea Tornielli, vaticanista que
pergunta: "Mas o semanário ‘Desde a fé’ que publica o editorial que
critica o Papa por ser mal assessorado não é da Arquidiocese?"
-- -- --
Entretanto o
jornalista e vaticanista Andrea Tornielli contestou a resposta de Pe. Hugo com
outra carta:
"Estimado Hugo,
quando recebi sua carta ocupei-me de atenuar o título e
subtítulo do artigo, nos quais dizia-se, corretamente, que o editorial era
anônimo e que não levava a assinatura do cardeal. Além disso, na versão em
espanhol do artigo em questão, incluí imediatamente uma passagem muito
significativa de sua carta.
Estava convencido de que a questão poderia
dar-se por concluída com o acréscimo de seus esclarecimentos, mas, ao receber
sua carta dirigida a mim e ao Vatican Insider, pude constatar que isso se
converteu em um documento oficial, com o qual você, seu semanário diocesano (e
teria que supor que também o arcebispo da Cidade do México) quiseram reduzir o
alcance do texto anônimo publicado em 'Desde a fé'. Por esta atitude,
pareceu-me necessário publicar integralmente a sua carta, e também algumas
frases da resposta.
Você escreve que "O semanário Desde a
fé da Arquidiocese do México não é a voz oficial nem da Arquidiocese nem de seu
arcebispo". Mas no site do semanário lemos que sua visão é a de
"posicionar o semanário arquidiocesano Desde a fé como uma voz autorizada
da Igreja no México no espaço eclesial nacional e no discernimento de temas
pastorais, teológicos e litúrgicos" (em sua conta no Twitter o semanário
descreve-se desta forma: "Desde a fé. Órgão formativo e informativo do
Arcebispo Primaz do México"; e em sua página do Facebook diz: "Desde
a fé é uma publicação semanal editada pela Arquidiocese Primaz do México, e
coordenada pelo Departamento de Comunicação Social da Arquidiocese do México
(COSAM), onde sua missão é guiar na fé a comunidade católica do México e sua
aplicação na vida cotidiana, bem como manter informada a Igreja Particular, procurando
a informação e reproduzindo as mensagens referentes ao desenvolvimento das
pastorais de conjunto").
Além disso, o artigo em questão (no qual, além disso, não
expressei qualquer julgamento e no qual me limitei a reproduzir fielmente o seu
raciocínio) era claramente delicado. Se o semanário da Arquidiocese da Cidade
do México expressa suas críticas ao discurso
que o Papa pronunciou diante dos bispos
mexicanos (que dizem que o pontífice teria sido "mal
informado"), é muito difícil para mim imaginar que estas expressões e
esses julgamentos não reflitam o pensamento da autoridade diocesana."[2]
Outra avaliação, todavia, é a do teólogo Eleazar López
Hernández que assim escreveu:
Ficamos totalmente embebidos com a visita
do Papa Francisco ao México
Não resta dúvida que os seis dias em que o Papa
Francisco esteve no México nos deixaram impregnados de gestos,
palavras e contextos concebidos pelo próprio Papa e pelos demais atores da
Igreja e da sociedade mexicana, com cada um cuidando e arvorando seus
interesses de classe ou suas bandeiras de luta para chamar a atenção e pedir o
olhar e a benção do visitante. Após essa enorme chuvarada de presença papal, é
preciso analisar com calma o que nos deixa para o cotidiano esse fato
extraordinário que ultrapassou nossas possibilidades imediatas de avaliação
séria e profunda.
Evidentemente, há muitas interpretações da visita papal, pois
cada ator social, político e religioso, tocado de alguma forma por Francisco,
tira suas próprias conclusões e acomoda as diferentes mensagens verbais ou
gestuais produzidas pelo Papa dentro de seus esquemas de vida. Aqui, a
contribuição que quero dar centra sua atenção especialmente nas implicações que
o fato terá para as comunidades indígenas, dado que é o meu âmbito de ação e
colaboração.
É o momento de sentarmos para tirar conclusões mais sérias da
visita papal
Assim como toda chuva torrencial que caiu em Cidade do
México, durante os últimos anos, esta chuvarada de presença papal será captada
e aproveitada de diferente forma pelos setores sociais e eclesiais que interviram.
E é previsível que só tirarão maior proveito aqueles que previamente contam com
canais por onde façam circular o fluxo de água deixado por este acúmulo de
palavras, gestos e silêncios do Papa Francisco.
A verdade é que se torna difícil enquadrar
o Papa Francisco nos esquemas que para nós funcionaram com os dois pontífices
que nos visitaram antes dele. Porque não só sai do tapete vermelho que lhe
puseram para cumprimentar as pessoas, como também intencionalmente quer
apresentar uma Igreja que sai do seu fechamento dentro de templos e espaços de
culto para dialogar com as pessoas da rua e dos âmbitos civis. E tão só por
esse atrevimento, ele vai além da prática pastoral comum de toda a Igreja, e
particularmente da Igreja mexicana, cujos bispos em sua maioria levam um estilo
de vida e uma prática pastoral muito distante do povo e de suas lutas
reivindicativas. Como consequência, o que fez e disse o Papa no México
contrasta muito com o que ordinariamente fazem nossos pastores, salvo honrosas
exceções.
Precisamente um destes excepcionais pastores comprometidos
com as lutas populares comentou, durante a visita, que Francisco, seguindo a
parábola do semeador, lançou a semente de sua palavra por todos os terrenos
mexicanos e em cada um o efeito será diferente, não pela falta de clareza ou
contundência do mensageiro, mas, sim, pela diversidade de atitudes dos
destinatários, cujo coração pode receber, rejeitar ou ficar indiferente diante
das abordagens do Pontífice.
Os ‘ganones’ – como dizemos no México –
parecem ser, como sempre, os “donos do poder e do dinheiro”, assim como eram
chamados pelo mártir e santo das causas populares da América, Óscar Arnulfo
Romero. Ao menos isso é o que eles acreditam; mas, na verdade, o
terreno destas classes poderosas e dirigentes do país é o mais endurecido e,
inclusive, refratário à palavra papal por causa de seus interesses e
preocupações muito distantes da ética estimulada pelo Papa. Eles certamente não
deixarão que o dito pelo Papa penetre em seu solo e rapidamente, com o passar
dos dias ou outros fatores ideológicos, farão com que desapareça por completo e
continuarão suas vidas praticamente sem nenhuma conversão ou mudança importante
e, além disso, sentindo-se, agora, abençoados pelo Santo Padre. Contudo, não se
pode descartar em absoluto que talvez alguns poucos sintam certo desejo de
limitar suas ambições ou ao menos dialogá-las ou negociá-las – como pediu o
Papa – com os que eles representam ou com aqueles que são os seus
trabalhadores, dependentes ou subalternos, já que “é pior deixar o futuro nas
mãos da corrupção, da selvageria e da falta de igualdade” (Mensagem aos
empresários e trabalhadores).
Por outro lado, os setores médios, onde
também estão as religiosas e os sacerdotes que acompanham o povo, junto com a
maioria trabalhadora que é mestiça e vive com rendimentos estáveis,
conquistados honestamente, possuem mais possibilidades de assumir a palavra do
Papa e de efetivar em suas vidas. Talvez só será necessário retirar algumas
pedras e espinhos de seu terreno para que a semente semeada por Francisco
germine, cresça e dê frutos que resultem em favor deste mesmo setor e que o
torne mais próximo das classes mais empobrecidas, para começar a fazer alianças
para construir juntos esse México sem violências, descartes e discriminações.
No entanto, aqueles que estão em melhores
condições de assumir vitalmente as contribuições do Papa são os que pertencem à
classe mais pobre, discriminada e abandonada do país, onde se encontram os
enfermos, os presos, os jovens e os indígenas com quem o Papa se reuniu. Eles -
como ancestralmente faziam seus antepassados, que percebiam no ‘teúl’ ou
estrangeiro que chegava o retorno de seu Deus Quetzalcóatl - viram no Papa um
'teopízcatl', ou seja, uma presença divina que veio em auxílio de suas
necessidades para restaurar a harmonia do bem viver e conviver. Pela visão e
atitude teológica que caracteriza os pobres do México, marcados agora pela espiritualidade
guadalupana, na verdade, eles são os únicos que acreditam na transcendência dos
fatos que marcam esta visita papal.
Contudo, além disso, entre estes pobres,
os que resistem organizados em comunidades indígenas ou em processos concretos
de luta pela vida já contam, desde antes da presença do Papa, com caminhos
operativos por onde canalizar a energia dos momentos propícios – que nós,
cristãos, chamamos de ‘kairós’ e os andinos de ‘pachakutik’ – como o gerado por
Francisco com seu trajeto em grande parte do território nacional.
Francisco se encontrou com indígenas que estão na luta
No setor dos empobrecidos, a presença
indígena se distingue por muitas razões. Em primeiro lugar, por ser, há
séculos, o mais pobre, espoliado e maltratado e, por isso, encontra-se
encurralado na periferia das periferias sociais do México. Mas, em segundo
lugar, também porque são aqueles que longamente resistiram ao embate dos
projetos dominantes que lhes foram impostos, sendo que aprenderam a se
movimentar dentro da Besta, como diz o Apocalipse, e souberam sobreviver à
grande tribulação, conservando suas flores que são suas verdades e suas
concepções de vida que não guardam para eles próprios, mas que, assim como Juan
Diego, buscam compartilhar com os demais membros da sociedade e da Igreja, para
construir um México com justiça e dignidade para todos.
O Papa Francisco, mesmo quando não
conhecia suficientemente esta realidade dos povos indígenas, percebeu muito
rápido a riqueza que eles portam em suas culturas, sabedorias e práticas
ancestrais. Um elemento fundamental dessa sabedoria indígena é o que o Papa
retomou e lançou ao conjunto da sociedade e da Igreja em sua encíclica Laudato
Si’: o cuidado com a mãe terra como casa comum da humanidade e matriz da vida
que devemos cuidar e proteger.
Vir ao México para saudar a Moreninha do
Tepeyac, sem se encontrar com Juan Diego e com os prediletos de Deus que são os
pobres, seria uma contradição. A Virgem de Guadalupe só se compreende na
totalidade ao lado daqueles que são os mensageiros dignos de toda confiança da
Senhora do Céu, aqueles que assumem em sua vida o projeto de sociedade que ela
apresenta: construir uma ‘teocátzin’, ou seja, uma digna casa de Deus e do
povo, onde, como disse Ela, sejam escutados todos os lamentos, misérias, penas
e dores do pobre e para ele se demonstre e dê todo o amor, compaixão, auxílio e
defesa que merece. Isto foi muito bem captado por Francisco, por isso pôde
dizer, já em sua chegada, que as duas principais riquezas com as quais se deve
“pensar e projetar um futuro, um amanhã para o México”, são sua cultura e
sabedoria ancestral e o capital humano majoritário de seus jovens.
Por isso, procurou por estes atores
sociais. E reuniu-se com os indígenas colocados em pé dentro da sociedade e da
Igreja mexicana, no dia 15 de fevereiro de 2016, em San Cristóbal de las Casas,
lugar emblemático pela construção da Igreja autóctone, iniciada por Tatic Samuel
e pelo levante zapatista de 1994. Estando com os indígenas, Francisco estimulou
a sociedade mexicana a “fazer um exame de consciência e aprender a dizer:
Perdão” aos indígenas, porque no passado e no presente, “muitas vezes de modo
sistemático e estrutural, seus povos foram incompreendidos e excluídos da
sociedade... seus valores, sua cultura e suas tradições foram considerados
inferiores... foram despojados de suas terras” por causa do poder, do dinheiro
e das leis do mercado.
Apesar das limitações colocadas por
aqueles que se opõem à causa indígena, as irmãs e irmãos que conseguiram se
aproximar do Papa descobriram que Francisco, ainda que tenha vindo de muito
distante, pôs o coração “perto de nosso coração”, percebeu nossas flores e
espinhos que nos aguilhoam; ouviu a “nossa alegria e nossos sofrimentos com as
injustiças que padecemos, com a dor de nossos enfermos, com nossas crianças,
jovens e anciãos, e com nossa esperança em Cristo ressuscitado”. Recebeu nossas
propostas e nossa ação de graças “por ter chegado a nossa terra”, porque “ainda
que muitas pessoas nos desprezem, você quis nos visitar” (Palavras indígenas ao
Papa).
Nesse encontro, o Papa se envolveu com as vivências indígenas
tradicionais de oração e até fez uma reflexão teológica como se faz nas línguas
e esquemas próprios dos povos. Em resumo, nos indígenas fica a convicção de que
o Papa os reafirmou na “certeza de que ‘o Criador não nos abandona, nunca recua
em seu projeto de amor, não se arrepende de ter nos criado”. Ao final, também reabilitou
o nosso principal companheiro de caminho, visitando a sepultura de Dom Samuel,
tendo ao seu lado Tatic Raúl, que iria ser o sucessor. Por isso, “com nosso
coração agradecido - literalmente cheio de flores -, dizemos: Tatic Francisco,
muito obrigado!”.
Os indígenas não foram – como parece que
aconteceu em outros lugares visitados – um tema a mais da problemática social
mexicana sobre a qual o Papa reflete e, em seguida, convoca a Igreja local a se
comprometer. Os indígenas, independentemente da vinda do Papa, desde antes já
eram interlocutores forjados em uma longa luta de resistência. E com eles,
Francisco quis pessoalmente se reunir desde que soube da caminhada deste setor
do povo e da Igreja mártir de San Cristóbal de las Casas. Segundo relatam os
bispos do lugar, “foi uma decisão sua, conforme disse àqueles que comeram com
ele. Disse-lhes que havia escutado muitas coisas sobre nossa diocese e que
queria vir pessoalmente conhecer mais de perto nossa realidade” (Carta dos
Bispos de San Cristóbal, 20 de fevereiro de 2016).
No entanto, como era de se esperar, o
encontro não aconteceu sem espinhos e contrariedades. Os bispos da Diocese de
San Cristóbal acabam de tornar público que “continua doendo em nosso coração o
fato de que muitos de vocês, indígenas e mestiços, de perto e de longe, não
puderam entrar no lugar onde foi celebrada a Missa, apesar de ter chegado muito
cedo, de ter o seu ingresso e de ter feito um grande esforço para chegar. Não
sabemos se foi só desorganização do Estado Maior Presidencial, de quem dependeu
o ingresso, ou se houve outras intenções perversas e excludentes. Foi injusto,
desumano, inexplicável e muito doloroso o que aconteceu. Isto não dependeu da
diocese, mas, sim, das autoridades civis federais” (ibidem).
O presbitério dessa diocese ampliou a
informação ao escrever em uma carta aberta: “Com indignação queremos destacar
que também houve tristeza, raiva, irritação, aversão, lágrimas e frustração
porque não deixaram milhares de irmãs e irmãos indígenas e mestiços locais e de
fora, sacerdotes, leigos, leigas e religiosas participar de tão aguardado
encontro”. E destacam diretamente: “o governo com suas polícias armadas
bloquearam a passagem de milhares de peregrinos que tinham chegado um dia antes
e que estavam em San Cristóbal com muitas horas de antecedência, não lhes
permitindo o acesso ao evento”. E se questionam: É possível que o governo tenha
desejado impedir que houvesse êxito neste encontro e festa? É possível que o
governo mexicano tenha desejado enlamear a caminhada da Diocese de San
Cristóbal? E concluem: “Lamentamos que o governo tenha causado este sofrimento,
indignação e irritação. Com isto manifesta que a presença de nossos irmãos e
irmãs indígenas o incomoda, atrapalha este sistema de governo” (Carta do
Presbitério da Diocese de San Cristóbal de las Casas, 20 de fevereiro de 2016).
De maneira tal que há fundamentos para
suspeitar que tenha ocorrido intervenções mal-intencionadas e até perversas
atribuíveis ao governo federal e estatal, unidos aos poderosos locais, que
implementaram deliberadamente medidas de controle para calar a voz indígena e
diminuir, a nível nacional e internacional, a importância de seu encontro com o
Papa.
No entanto, ainda que esta ingerência
prepotente nos atos do Papa, não só em Chiapas como também nos demais lugares
visitados, tenha conseguido encher com antecipação ou com acessos preferenciais
os espaços principais com pessoas ligadas aos seus interesses e tenha impedido
o acesso de milhares de indígenas, o encontro aconteceu e os frutos aguardados
serão muitos, pois as comunidades indígenas, como já foi dito, têm como captar
em suas cisternas antigas e modernas o fluxo de vida impulsionado pela presença
papal. Por isso, os bispos de San Cristóbal podem afirmar: “a recente visita do
Papa Francisco em nossa diocese foi uma graça da misericórdia de nosso Deus
Pai, que quer estar perto de suas filhas e filhos, para nos dizer que não
estamos sós, que Ele nos ama e que a Igreja quer ser e estar junto daqueles que
mais o necessitam” (carta já citada).
O que vem agora?
O que acontecerá com as mensagens do Papa
ao México? Com o que ficaremos para reorientar nossa vida? Isto já não é
responsabilidade do Papa, mas, sim, de nós mexicanos. O Papa já cumpriu sua
tarefa aqui. Como mensageiro da paz já espalhou a semente de Deus por todos os
lados. Depende de nós que ela germine, cresça e dê fruto. Os poderosos civis e
eclesiásticos dificilmente vão tentar mudar sua perspectiva ideológica e,
certamente, muito rápido, esquecerão as mensagens papais. São os demais setores
da sociedade e da Igreja mexicana, a classe média e trabalhadora e, sobretudo,
os leigos que tomarão em suas mãos as mensagens papais e trabalharão para
efetivar em suas vidas esses ideais.
Essa luta pela vida do povo pobre do México é o que continua
em pé, após a visita do Papa Francisco! Com sua benção e, sobretudo, com nosso
compromisso inabalável, seguirá ativa a esperança para que logo chegue esse
novo amanhecer do México, apontado pelo próprio Papa “como um novo horizonte de
possibilidade que é, inevitavelmente, portador de justiça e de paz” (Discurso
no Palácio Nacional).[3]
Digitou esse texto Ricardo Rodrigues de Oliveira, enfermeiro cuidador
do autor.
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